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Companheiras

  • Desafios da Escrita
  • 24 de set. de 2021
  • 3 min de leitura

Abarcávamos, com força, os pés do Ademir. Com a ausência de quaisquer atacadores, era-nos extremamente difícil acompanhar o passo desajeitado dele, sem ficar para trás. A guerra civil eclodira, na Síria, e o conforto da sua casa dera lugar a uma cordilheira de escombros. A janela do seu quarto emoldurava inocentes, caos, ruínas, desespero… e fora nesta urgência de viver que a pobre criança aprendera a caminhar, na busca incessante de um refúgio.

Os primeiros raios da manhã davam claridade ao novo dia, que se revelava, como habitualmente, esgotante e demorado… nada de invulgar se insinuava, e nós, cobertas de poeira, deixávamos marcas no trilho que o Ademir percorria, sem destino certo. Já pisáramos, juntos, relva seca, saltáramos de pedra em pedra, num riacho, e ficáramos, também, imóveis, dentro de um barco frágil. Nunca tínhamos dado um passo atrás. De facto, quem se sujeita a estas batalhas, como o Ademir, é resiliente ao ponto de, jamais, recuar, até porque, na verdade, não tem outra alternativa.

Após caminharmos várias horas, começámos a reparar numa outra sombra, que se tinha tornado cada vez maior, aos nossos olhos, e foi neste momento que o Ademir se virou. Apenas, conseguíamos ver dois pés, maiores que os dele. Uma sensação de desassossego invadiu-nos e, com esforço, tentávamos compreender a conversa entre os dois. O homem que nos perseguia falava uma língua que nos era estranha e, eventualmente, segurou no Ademir e entrámos numa viatura. Já na última luz do dia, chegámos, finalmente, ao destino. Mal abandonámos o carro, inúmeras botas militares passaram, aceleradamente, pelos nossos olhos. Vimos, ainda, as lágrimas de Ademir, que tombavam na terra, por estar, certamente, perturbado. Imediatamente, fomos conduzidos a um espaço coberto, onde, de súbito, nos separaram dele e nos jogaram, bruscamente, para um caixote, com muitas outras sapatilhas, que foi, posteriormente, selado, com uma fita-cola resistente. Escutávamos a voz do menino, que, entre soluços, vociferava, incansavelmente. Pensámos que nunca mais o ouviríamos…

O tempo, em que ali permanecemos, foi deveras agonizante. Enfim, anos depois, que pareceram séculos, o caixote foi, novamente, aberto. A própria luz nos incomodou, ao princípio, visto que estávamos acostumadas ao negro daquele recipiente. Todas as sapatilhas foram retiradas da caixa, exceto nós, pois não tínhamos atacadores, de modo que não éramos úteis. Uma sensação avassaladora de impotência consumiu-nos... Contudo, quando, já, estávamos descartadas, no exterior do caixote, vimos, outra vez, dois pés, cujo andar nos era familiar. Assim que esse indivíduo nos pegou, reconhecemos, logo, quem era, uma vez que o modo como nos tocava era inconfundível. Sem dúvida, era o mesmo Ademir de sempre… ainda que mais alto e corpulento, era o rapaz dos olhos encovados e ternurentos, e da cicatriz peculiar, que cruzava a sua testa.

Este homem, outrora criança indefesa, contou-nos todas as peripécias, por que passara, nos anos anteriores. Relatou a solidão dos dias, o desejo de fugir e, sobretudo, o receio dos adultos, com que se deparou, no começo. Todavia, o Ademir acabou por entender a verdadeira intenção daqueles homens, que eram, somente, voluntários que o queriam acudir. Assim, anos mais tarde, ele próprio tornou-se um deles.

Por fim, o Ademir colocou-nos atacadores novos e, sem que nos pudéssemos despedir, brevemente, dele, fomos entregues a outra criança. Hoje, desejamos que esta menina siga os passos de Ademir, que caminharam para um recomeço, apesar das adversidades.



Matilde Brazão – 11º 24

 
 
 

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