Ufa! Já não aguento
- Desafios da Escrita
- 24 de abr. de 2024
- 3 min de leitura
Bem-vindos amigos, eu sou a sapatilha do lado direito e hoje vou contar a história da minha vida. Tudo começou numa fábrica. Entre formas de sapatilhas, tecido e atilhos, saí eu. Sempre me achei diferente de todas as outras. Eu era uma sapatilha muito colorida, tinha o arco-íris espalhado pelo meu corpo, sola branca e atilhos azul-claros. Havia algumas irmãs muito parecidas comigo, mas existiam, também, milhares de outras diferentes, das mais variadas cores, até de sola preta existia.
Depois de alguns dias enfiada numa caixa, saí à rua. Estava agora num espaço completamente diferente, sozinha, pois o meu par não viera. Parte de mim, estava agora numa pequena prateleira de uma loja, também ela, pequena. Estava rodeada por outras sapatilhas, também, sem par. Sentia-me exposta com tantas luzes e pessoas ao meu redor.
Os dias passaram, talvez meses… para ser sincera perdi a conta. Ninguém me tocava ou olhava para mim. Comecei a duvidar de que era bonita, até que um dia, acordei da minha sesta com umas mãos suaves a me segurarem, como se eu fosse algo precioso. Parecia feliz por me ver, tocava-me com espanto. Era exatamente isso de que precisava, uma dona. A senhora parecia ter os seus setenta anos e estava acompanhada da sua neta que parecia tão amável quanto a minha suposta nova dona. Em pouco tempo, estava eu outra vez com a minha cara metade, o meu par. Estávamos na mesma caixa apertadinha da qual tinha memória. Vi luz novamente, num espaço que pensei ser a casa da nossa dona. Era acolhedora e, tal como eu, era cheia de cor e vida.
Nunca me esquecerei do dia em que fomos calçadas pela primeira vez. Como esquecer? Foi um momento mágico. Finalmente, tínhamos algum propósito. Poucos minutos depois, já conhecia a casa toda. Sim! Infelizmente, também conhecia a casa de banho e os seus odores misteriosos.
Tudo corria maravilhosamente bem no início. Estava a descobrir um novo mundo, mais pessoas, árvores, nós até fizemos um novo amigo, um ser de quatro patas extremamente fofo, que acariciou a sapatilha do lado esquerdo com o seu nariz pequeno. Confesso que fiquei ciumenta, no início, mas o meu par acalmou-me rapidamente. Realmente, não havia motivos para ter ciúmes, nós éramos um par, para o resto da nossa vida.
Depois de infinitos passos, chegamos ao que, durante dias, ouvira as outras sapatilhas coscuvilhar, um salão de dança. Ali, tudo era diferente do que tinham descrito, era muito melhor. Era amplo, estava muito bem iluminado e a música de bela qualidade ecoava pela sala toda. A nossa dona parecia radiante de felicidade, agarrando-se a um senhor, que pensei ter a mesma idade da humilde senhora. Talvez fosse o seu par, como a sapatilha esquerda é para mim.
Pelo tempo que se seguiu, a mulher não podia ter setenta anos. Ela não se cansava. Perna para lá, perna para cá, depois subia uma, baixava outra, e os braços abanavam em sintonia. Parecia que estávamos lá há uma eternidade - Já não aguento! – pensei. Para piorar a situação, a pobre da sapatilha esquerda já fora pisada inúmeras vezes pelo acompanhante da nossa dona que, até então, não a largou nem por um segundo.
Depois de horas, a nossa dona decidiu, finalmente, abandonar o sítio, ao qual, provavelmente, iríamos voltar muitas mais vezes. Mas adivinhem o que aconteceu depois. A mulher decidiu ir a pé para casa. Saudades daqueles dias em que ficávamos em casa a descansar enquanto ela usava as nossas novas amigas, as sapatilhas azul-escuras. Estávamos finalmente a poucos passos de casa, quando algo terrível aconteceu. Eu fui obrigada, pela minha dona distraída, a pisar cocó, obra daquele ser de quatro patas. Ele era fofinho, mas aquele cheiro era exatamente o oposto. Quando a senhora se apercebeu começou a me raspar na berma da estrada. Não vou mentir, foi uma experiência traumática, mas graças à santa das sapatilhas, sobrevivi. Eu e o meu par passamos por muito, em apenas um dia. Já em casa, fui limpa com uma toalha que cheirava a rosas.
E foi com aquele incidente desastroso que aprendi que, às vezes, acontecem coisas más para dar lugar a coisas boas. Também aprendi que andar muito pode custar, mas isso é viver. Por isso, daqui em diante, vou tentar não reclamar tanto e aproveitar mais o que tenho, visto que, nunca se sabe quando irá acabar.
Diana Garanito
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